Sistema Cantareira

     A imagem é formada por camadas de fotografias e desenhos produzidos durante minha trajetória com o rio Piracicaba. A fotografia foi feita por mim de cima da ponte estaiada sobre o rio Piracicaba, na região da Rua do Porto, em agosto de 2018. O desenho que compõe a montagem foi feito por minha companheira Laura. As imagens foram sobrepostas com um aplicativo de edição de imagem. Outras sobreposições foram testadas antes de se chegar a esse resultado. 

     Na imagem, aparece o leito do rio raso fotografado de cima, que é sobreposto com desenhos de peixes transbordados das margens da fotografia. O leito do rio está seco. 

     “Numa altitude de 522 metros acima do nível do mar, o [rio] Piracicaba inicia seu curso. Sua formação está nas seguintes coordenadas geográficas: 22″ 45′ de Longitude Sul e 47″ 15′ de Latitude Oeste” (GUIDOTTI, 1994, p. 29). Segundo José Luiz Guidotti (1994), o rio Piracicaba não tem nascente. Sua origem está quando, a 800 metros da Barragem de Salto Grande, nas proximidades de Americana/SP, o rio Atibaia encontra-se com o rio Jaguari. É dessa relação, do encontro das águas desses dois rios, que surge o rio Piracicaba. 

     Apesar de o rio Piracicaba receber esse nome nas proximidades do município de Americana/SP, as chamadas “nascentes do Piracicaba” estão localizadas na Serra da Mantiqueira. Sua bacia hidrográfica abrange uma área de mais de 12 mil km2, distribuída pelo sudeste do estado de São Paulo e pelo extremo sul do estado de Minas Gerais.

     Logo ali, próximo às nascentes, está o Sistema Cantareira. A bacia do rio Piracicaba é considerada uma das principais do estado de São Paulo e, junto com a bacia hidrográfica do Alto Tietê, abastece o Sistema Cantareira por meio de quatro reservatórios de água, que além de abastecer as cidades da Grande São Paulo, também abastecem cidades do interior do estado.

O Sistema Cantareira é um dos maiores sistemas de captação de água do planeta com capacidade de abastecer nove milhões de pessoas da região metropolitana de São Paulo. Sua superfície ocupa uma área de 227.803 hectares (2.278,0 km2), abrangendo 12 municípios, sendo quatro deles no estado de Minas Gerais (Camanducaia, Extrema, Itapeva e Sapucaí-Mirim) e oito em São Paulo (Bragança Paulista, Caieiras, Franco da Rocha, Joanópolis, Nazaré Paulista, Mairiporã̃, Piracaia e Vargem). Cerca de 55% do Sistema faz parte do Estado de São Paulo e 45% de Minas Gerais.  (UEZU et al., 2017, p. 35)

     Desde o início dos anos 1970, as cabeceiras da Bacia do rio Piracicaba abastecem cerca de 9 milhões de habitantes da Região Metropolitana de São Paulo através do Sistema Cantareira, conjunto de barragens de regularização de vazões, de canais e de túneis operados pela Sabesp – Companhia de Saneamento Básico do Estado de São Paulo (MONTICELLI, 2019, p. 23).

Esse grande sistema foi construído em duas etapas, a partir da década de 1970, tendo como objetivo a captação e formação estratégica de um principal manancial para abastecimento de água para diversos municípios próximos e ligados à capital paulista. De 1965 a 1975, foram realizadas as obras para construção dos reservatórios Cachoeira, Atibainha e Paiva Castro, e, entre 1975 e 1981, a construção dos reservatórios interligados Jaguari e Jacareí. O Sistema, desde sua origem, apresenta como finalidade a transposição das águas da bacia do rio Piracicaba para a bacia do Alto Tietê. As águas são recebidas através do rio Juqueri, escoando naturalmente até o reservatório Paiva Castro e através do bombeamento na estação elevatória de Santa Inês, atinge o reservatório de Águas Claras. Deste reservatório, por gravidade, atinge a Estação de Tratamento de Água do Guaraú e, então, é distribuída para a Grande São Paulo (Disponível no link).

     Inaugurado em 1974, no auge do “milagre econômico” da ditadura militar, por Laudo Natel, governador de São Paulo (1971-1975), o Sistema Cantareira é o maior dos seis sistemas de abastecimento hídrico de São Paulo.Possui reservatórios de água interconectados que captam água de rios da bacia hidrográfica do rio Piracicaba e do Alto Tietê para abastecer aproximadamente 46% da população da Região Metropolitana de São Paulo.

     Entretanto, o primeiro projeto que indicou o aproveitamento das águas da Serra da Cantareira como solução para os problemas de abastecimento da cidade de São Paulo data de 1863. Naquele ano, o governo da província encarregou um engenheiro britânico, Brunless, para elaborar um estudo que embasasse o desenvolvimento de um plano geral de abastecimento de água e coleta dos esgotos para a capital.

Auxiliado pelos engenheiros Hooper e Daniel Makinson Fox, Brunless levantou a planta topográfica da cidade traçando um projeto para abastecimento de água e implantação de uma rede de esgotos. No ano seguinte, os engenheiros apresentaram relatório que indicava a adução das águas da Serra da Cantareira para abastecimento da cidade de São Paulo (Disponível no link ).

     Em razão do alto custo, o projeto não foi executado naquele período, e em 1868 foi realizada outra tentativa de aproveitamento de uma das fontes localizadas nos arredores da capital, denominada “Vertentes do Tanque Reúno”, que também não foi suficiente para atender a demanda populacional da época. Protestos da população, presentes nos jornais da época, exigiam do poder público uma solução definitiva para o problema. Em 1877, após a criação da Companhia Cantareira e Esgotos,

Foram construídos dois grandes reservatórios de acumulação para represamento dos mananciais na Serra, e em 12 de maio de 1881 foram então concluídas as obras capazes de abastecer o dobro da população existente, que nesse período era de 30.000 habitantes. Em 1882, alguns chafarizes da cidade já recebiam as águas do novo manancial e em 1883, os primeiros beneficiários, os moradores de 71 prédios do bairro da Luz, começam a receber água em casa (Disponível no link).

     Em 1883, foi concluída a obra do reservatório da Consolação que atenderia o centro da cidade de São Paulo. E, seguindo as recomendações da Repartição de Águas e Esgotos da Capital, o Estado desapropriou fazendas na Serra da Cantareira com o objetivo de utilizar essa área para a captação de águas e proteção de nascentes. O sistema foi sendo construído e novas captações de águas foram implantadas. Apesar disso, em 1920 foi criada uma Comissão de Saneamento para procurar novas soluções para o abastecimento da cidade e foi levado a efeito um plano de emergência. O abastecimento de água da cidade passou por duas outras crises nos anos de1932 e 1937.

     Segundo um dossiê elaborado pela Sabesp em 2008, o “Sistema Cantareira Velho continuou em funcionamento até a década de 1970, contribuindo para o abastecimento da cidade, quando entrou em funcionamento a sua nova etapa, iniciada com o aproveitamento das águas do rio Juqueri, hoje denominado Sistema Cantareira” (SABESP, 2008, p. 8).

     O projeto, do Sistema Cantareira atual, que inicialmente visava ao aproveitamento das águas do rio Juqueri para o abastecimento da cidade de São Paulo, foi idealizado em 1962, sob o governo de Abreu Sodré. Em 1968, foi concluído o relatório final que apontou o Sistema Cantareira como prioritário para resolver os “problemas de abastecimento” de água que a Região Metropolitana de São Paulo vinha enfrentando. Para reforçar e justificar a decisão do governador de enfrentar a construção do Sistema Cantareira, o médico sanitarista Walter Leser elaborou, em 1969, um estudo no qual demonstrava que a ampliação do abastecimento de água de uma população diminuiria consideravelmente a taxa de mortalidade infantil. Além da solução milagrosa para os problemas de falta de água e de mortalidade infantil da Região Metropolitana de São Paulo, a efetivação do projeto anunciava a possibilidade do sonho cosmopolita de desenvolvimento econômico. 

     A construção do Sistema Cantareira consolida um processo de desenvolvimento modernista para o rio Piracicaba, com forte impacto na transformação dos lugares vitais para os diferentes mundos que se entrecruzam nele. O conflito em torno da construção e operação do Sistema Cantareira, durante o período da ditadura militar no Brasil, põe em evidência o projeto moderno de desenvolvimento. A necropolítica do Sistema Cantareira mata e concreta diferentes vidas em suas barragens. Podemos dizer que, com o movimento de desbordar das margens, o rio Piracicaba resiste fazendo jorrar seus massacres. 

     Cabe aqui trazer a narrativa de Dona Cida, companheira do rio Piracicaba, registrado no meu caderno de campo do mestrado: “Um pouco mais pra baixo da Rua do Porto [na margem do rio Piracicaba], naqueles anos [da ditatura militar], do lado de lá do rio Piracicaba, a gente ouvia os gritos de pessoas torturadas pelos policiais. Da minha casa eu ouvia tudo”. Ou seja, a concretização da necropolítica do sistema capitalista industrial parece ter ocorrido concomitantemente ao silenciamento das vozes de oposição e resistência a esse projeto de nação.

     O caráter processual do desastre nos alerta que a morte do rio Piracicaba não se inicia no dia 29 de dezembro de 1973, dia em que o Sistema Cantareira começou a ser operado. O desastre idealizado, planejado e desenvolvido no período da ditadura militar, faz parte de um projeto necropolítico que se estende no tempo, continuando a matar determinadas formas de vida, tendo como justificativa possibilitar a existência de outras. Nessa perspectiva, a inauguração do Sistema Cantareira é um marco incontornável para o rio Piracicaba, tal como a ditadura militar, que através de ações, instituições (polícia militar) ou pessoas perdura no tempo torturando e matando pessoas até os dias de hoje, podemos dizer que o desastre da construção do Sistema Cantareira não aconteceu num momento específico, e tampouco se resolveu com o tempo, mas permanece violentando o rio lentamente. 

     Em artigo intitulado “Turbulent River Times” publicado, Lisa Blackmore (2020) comenta que “As barragens alteram totalmente as bacias hidrográficas. Barragens e reservatórios são as antíteses dos rios, cuja “ontogênese” é fluir em diferentes volumes e intensidades, mas sempre fluir” (p. 18 – tradução nossa). Para ela, as estruturas das barragens alteram e param o batimento cardíaco dos rios

     Entre os anos de 2013 e 2015, o Sistema Cantareira passou por um período de seca,  considerada a pior da história do sistema, em que o nível dos reservatórios chegou a cerca de 5,0% de armazenamento. Esta crise hídrica representou um alerta para o estado de degradação dessa região, dando indicações de que são necessárias mudanças para aumentar a resiliência desse sistema.

 

REFERÊNCIAS