Peixes
A imagem é formada por fotografias feitas ou encontradas por mim e por desenhos produzidos por minha companheira Laura durante minha trajetória com o rio Piracicaba. Os desenhos foram feitos com caneta nanquim sobre uma folha de papel branco em 2016. Para essa montagem utilizei um desenho e fragmentos de fotografias feitas em 2014, 2016 e 2018 e uma fotografia encontrada por mim no arquivo do Instituto Histórico e Geográfico de Piracicaba. As fotografias foram impressas, recortadas e coladas em uma folha de papel branco. Laura compôs a imagem com desenhos. Posteriormente, essa imagem foi escaneada e sobreposta, com um aplicativo de editor de imagem, à fotografia encontrada no arquivo. Outras sobreposições foram testadas antes de se chegar a esse resultado.
Na imagem, vários pescadores tentam capturar os peixes do rio Piracicaba. A fotografia é de um homem carregando um peixe nas costas ao lado de outro com seu cachorro. A fotografia de uma coruja e de um peixe desenhados na parede também compõem a imagem.
Um dos livros que adquiri durante a pesquisa de doutorado foi escrito por Nelson de Souza Rodrigues e Luccas Longo, Piracicaba, seu rio, seus peixes. Em seus catorze capítulos, os autores abordam como tema principal os peixes do rio Piracicaba, incluindo uma série de desenhos detalhados da anatomia deles. Segundo Rodrigues e Longo, a intenção foi oferecer conhecimento sobre a geografia do rio, a biologia dos peixes, além de estabelecer a relação do rio com a história da cidade de Piracicaba. Os autores contam que a dificuldade de transpor as quedas e corredeiras do rio Piracicaba favoreceu a concentração de cardumes de diversas espécies na região do salto do rio Piracicaba.
Essa circunstância determinou, desde período imemoriável, a instalação de uma aldeia do povo indígena Paiaguás que, pela fartura de peixes e pela facilidade com que eram apanhados, geraram o nome, ‘Pira – cycaba’, em que pira = peixe e cycaba = lugar ou modo de cercar ou apanhar o peixe” (RODRIGUES; LONGO, s/d, p. 18).
Nos finais de semana e feriados, encontramos os restaurantes da Rua do Porto bem cheios: um único restaurante chega a servir mais de trezentas refeições em um domingo. A principal procura dos clientes é pelo “tradicional peixe no tambor”. Os peixes são pré-assados na beira do rio e os diferentes tipos podem ser escolhidos pelos clientes direto nos tambores de lata: filhote, pintado, piapara, tambaqui, linguado, tilápia, abadejo, merluza, tucunaré, anjinho, cascudo, salmão. Geralmente, os garçons oferecem como complemento cuscuz, salada e batata frita. Caipirinha, cerveja, refrigerante, suco e água são as bebidas compartilhadas pelos clientes em suas mesas. (CAMARGO, 2016a, p. 45).
Em 1950, essas margens do rio Piracicaba eram conhecidas por serem a segunda maior colônia de pescadores do estado de São Paulo (NEPTUNE, 2003, p. 44). Quase duas mil embarcações se enfileiravam nos barrancos do rio e ali capturavam, em média, mil quilos de peixes diariamente (CARRADORE; BUZETTO, apud DAWSEY, 2012, p. 198). Em razão disso, dois restaurantes se instalaram ali até a década de 1990 para comercializar os peixes capturados pelos pescadores no rio Piracicaba assados em latões de ferro. Até 1998, onze restaurantes ocupavam a margem do rio na região da Rua do Porto. Mas é importante contar quedesde 1979 representantes da colônia de pescadores da Rua do Porto manifestavam preocupação com a diminuição de suas atividades: os peixes estavam sumindo dali.
Conforme descrição de Guidotti (1992), em 1992 os restaurantes da Rua do Porto já comercializavam alguns peixes oriundos do estado do Mato Grosso. Atualmente, nenhum dos peixes vendidos nos restaurantes da Rua do Porto foram pescados no rio Piracicaba. Isso porque a quantidade já não é suficiente para os restaurantes; e a qualidade (muitos deles, por conta da poluição do rio, estão contaminados) dos peixes já não é própria para o consumo. Lucimar Curvo et al. (2020) destacam que a produção de peixes no Brasil vem aumentando exponencialmente desde 2005. Segundo os autores,
Entre 2005 e 2017, novas empresas foram estabelecidas e a rápida profissionalização e a intensificação tecnológica aumentaram a produção da piscicultura brasileira em 268,8%, passando de 257 mil para 691 mil toneladas de pescado nesse período. Nesse mesmo aspecto, a produção de peixes em cativeiro no Brasil vem aumentando, principalmente devido às políticas públicas de incentivos governamentais. (2020, p. 2).
Nesse cenário, o estado de Mato Grosso é o quarto maior produtor de peixes do Brasil, atingindo uma produção de 54.510 toneladas em 2018 (CURVO et al., 2020). E, inseridos nesse contexto, estão os peixes comercializados nas margens do rio Piracicaba. A história de comer o peixe produzido no Mato Grosso na beira do rio Piracicaba mostra como a morte lenta do rio pode ser escondida embaixo dos barrancos do rio Piracicaba.
Na “tentativa” de “reparar os danos causados pela atividade humana” na bacia do rio Piracicaba, há cerca de oito anos, a Empresa de Energia Tietê (AES Tietê ou AES Brasil), em parceria com a prefeitura de Piracicaba, o Instituto Beira-Rio e a Associação dos Pescadores Esportivos do rio Piracicaba e Afluentes (Aperp) realizaram uma soltura de alevinos no rio. Dentre eles estavam espécies que se encontram em extinção, como a piracanjuba e o dourado. Segundo o site da empresa, o Programa de Manejo Pesqueiro da AES Tietê tem por objetivo fazer a manutenção reprodutiva, genética e ambiental de seis espécies nativas de peixes, além de monitorar a qualidade da água em reservatórios de responsabilidade da empresa. Alevino é a designação dada aos peixes recém-saídos do ovo e que já reabsorveram o saco vitelino ou, no caso dos ovovivíparos, como os lebistes, logo após o nascimento. A apresentação do projeto, encontrada no site da empresa, destaca que anualmente as parcerias têm conseguido repovoar com 2,5 milhões de alevinos os rios afetados pelos reservatórios. Isso, segundo eles, possibilita manter a produção pesqueira dessas regiões, gerando renda para as comunidades locais.
A AES Tietê é a operadora que faz a gestão do reservatório de Barra Bonita instalado no rio Tietê, próximo à foz do rio Piracicaba. É uma empresa de comercialização de energia elétrica que possui um parque gerador composto por nove usinas hidrelétricas e três centrais hidrelétricas no Brasil. Ela faz parte da companhia global AES Corporation, com sede em Arlington, na Virgínia/EUA. Por meio de um processo de privatização, o grupo AES adquiriu, em 1999, a Companhia de Geração de Energia Elétrica Tietê, uma das três empresas criadas no processo de cisão da Companhia Energética de São Paulo (Cesp).
Em 12 de março de 2014, o então secretário de Defesa do Meio Ambiente de Piracicaba solicitou à AES Tietê ajuda para uma ação de repovoamento do rio. Conforme o portal de notícias G1,
Há exato um mês, o manancial registrou mortandade estimada em 20 toneladas de peixes. A AES informou à Prefeitura que avaliará o pedido e responderá em até 60 dias. Milhares de peixes apareceram mortos no rio Piracicaba na tarde do dia 12 de fevereiro em razão das baixas vazão e oxigenação causadas pela falta de chuvas. “Estamos buscando alternativas para o repovoamento e para tentar reduzir o prejuízo relacionado aos peixes que deixaram de nascer no período da piracema, que é de reprodução das espécies”, afirmou Vidal. Na avaliação do secretário [do Meio Ambiente], a mortandade impactou na diversidade do rio e também na autoestima da população local. “Procuramos a AES Tietê, que tem programas ambientais, para estudar uma soltura extra e significativa para ajudar na recuperação da população de peixes”, disse o titular da Secretaria Municipal de Defesa do Meio Ambiente (Sedema). A gerente de Meio Ambiente, Programas Corporativos e Gestão de Programas Ambientais da AES Tietê, Sônia Hermsdorff, explicou que a companhia mantém um programa que distribui alevinos para a repovoação dos rios. “São 2,5 milhões de peixes de seis espécies divididos ao longo das nossas bacias. Será feita uma reavaliação dessa possibilidade para contribuir com o município para amenizar essa mortandade”, declarou. (DECISÃO…, 2014)
Na semiologia do capitalismo, o rio é reduzido a um recurso natural fundamental para a produção de energia elétrica para satisfazer “necessidades humanas” e é também espaço compensatório de um tipo de desenvolvimento insustentável. O “repovoamento” promovido pela AES Tietê no rio Piracicaba tem por objetivo compensar processos de exploração, repovoando o rio com algumas espécies de peixes, muitas delas ameaçadas de extinção. Mas isso não resolve o problema, e não podemos falar de solução para a mortandade dos peixes se não estivermos implicados nela. Essa é uma renúncia às responsabilidades e o que precisamos é de uma avaliação crítica, um olhar que sabe tanto de onde se olha quanto para o que se olha. O envolvimento do Estado, de ONGs e da empresa que se diz “exemplo de responsabilidade ambiental” funciona como o “truque de Deus” (HARAWAY, 1995); a ideia do “repovoamento do rio Piracicaba” nos enfraquece, entorpece e chantageia, fazendo-nos acreditar que é possível compensar os danos causados “devolvendo” algumas vidas ao rio.
Os peixes são vidas fantasmagóricas como a “areia das praias, os desertos do campo, os brinquedos de nossas crianças, o ar que respiramos, a água que bebemos, as terras rachadas por secas, as áreas inundadas ou os incêndios” (AZAM, 2020, p. 77). O rio é reduzido a um “cenário bonito para selfies”. Não podemos reduzir os rios a recursos naturais destinados a satisfazer nossas necessidades e nos conformar com a opção do repovoamento do rio com algumas espécies de peixes.
Até o final da década de 1950 o rio Piracicaba tinha uma abundância de peixes e a água era tão limpa que era possível beber dela diretamente do rio. Mas em 13 de maio de 1959, o Jornal de Piracicaba noticiou:
Milhares de peixes mortos – Durante 48 horas seguidas, milhares de peixes mortos coalharam o rio Piracicaba. Seria necessário mais cuidado por parte das indústrias ao fazerem descargas de detritos poluidores no rio Piracicaba. Com isso sofrem toda a população ribeirinha e a fauna do rio Piracicaba, outrora o mais piscoso dos rios do Estado de São Paulo (Jornal de Piracicaba apud GUIDOTTI, 1992, p. 62).
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Enquanto a poluição industrial elimina cardumes inteiros (no ano passado, somente num mês, foi estimada em mais de 30 toneladas de peixes), o pequeno pescador em companhia de renintes turistas continuam a ter suas varas apreendidas pela fiscalização, que cumpre os ditames da legislação de proteção à pesca e à caça. […] O rio Piracicaba vem sofrendo processo progressivo de degradação de suas águas, com grande aceleração a partir da década de 1960, atingindo atualmente um estágio bastante elevado de poluição apresentando-se no período de estiagem com suas águas fortemente enegrecidas (apud GUIDOTTI, 1992, p. 23).
Em 25 de dezembro de 1979, o Diário Oficial do município de Piracicaba trouxe uma matéria em que dizia:
Repetiu-se o massacre no rio Piracicaba – Incalculável volume de peixes mortos roda no rio Piracicaba, segunda e terça-feira, um dos mais altos índices de poluição atingiu o Piracicaba, dizimando sua fauna aquática já em fase de extinção. […] O fato foi provocado pelo rompimento de um tanque de resíduos industriais (lixiria negra) da indústria de Papel e Celulose RIPASA, e o despejo no Rio que abastece de água a população de Piracicaba foi de tal monta que obrigou o SEMAE a suspender o tratamento químico na manhã de segunda-feira. […] A grande vazão que ocorre atualmente no Rio Piracicaba, foi um dos fatores que não permitiu que a cidade entrasse em colapso no sector de abastecimento de água. A vazão atual de 200 metros cúbicos por segundo, fez com que a grande mancha passasse rapidamente, sendo que, por pouco tempo, o sistema de captação de águas teve seu trabalho suspenso (Diário Oficial apud GUIDOTTI, 1992, p. 62).
