Rio de lágrimas
Compositores: Lourival Dos Santos / Piraci / Tião Carreiro
O Rio de Piracicaba
Vai jogar água pra fora
Quando chegar a água
Dos olhos de alguém que chora
Quando chega a água
Dos olhos de alguém que chora
Lá no bairro que eu moro
Só existe uma nascente
A nascente dos meus olhos
Já formou água corrente
Pertinho da minha casa
Já formou uma lagoa
Com lágrimas dos meus olhos
Por causa de uma pessoa
O Rio de Piracicaba
Vai jogar água pra fora
Quando chegar a água
Dos olhos de alguém que chora
Quando chega a água
Dos olhos de alguém que chora
Eu quero apanhar uma rosa
Minha mão já não alcança
Eu choro desesperado
Igualzinho uma criança
Duvido alguém que não chora
Pela dor de uma saudade
Quero ver quem que não chora
Quando ama de verdade
O Rio de Piracicaba
Vai jogar água pra fora
Quando chegar a água
Dos olhos de alguém que chora
Quando chega a água
Dos olhos de alguém que chora
A imagem é formada por camadas de fotografias e desenhos produzidos durante minha trajetória com o rio Piracicaba. As fotografias recortadas em fragmentos que compõem a imagem foram feitas por mim em janeiro de 2016 na região da Rua do Porto. Para essa montagem utilizei duas fotografias além de alguns traços desenhados por minha companheira Laura. A camisa azul foi recortada de uma fotografia e colada numa folha de papel branco. Os traços desenhados por minha companheira vieram depois. A imagem foi escaneada e impressa novamente para que eu a utilizasse como molde do bordado feito no tecido bege. Fotografei o processo do bordado e, com um aplicativo de edição de imagem, fiz uma sobreposição das duas imagens. Outras sobreposições foram testadas antes de se chegar a esse resultado.
No centro da imagem, o desenho de uma camisa azul está bordado no tecido bege. A imagem é sobreposta por outra, que se revela do lado direito. A sobreposição é composta por traços desenhados por Laura e pela fotografia da camisa azul. As imagens, fotografadas, desenhas e bordadas estão transbordadas umas nas outras. É o tempo dos transbordamentos. A camisa está secando no varal, aguardando a água baixar. O leito do rio está cheio. Suas águas agitadas desbordam das margens entrando nas casas dos moradores da Rua do Porto.
A primeira quinzena de janeiro de 2016 foi de muita chuva. Depois de dias chovendo, com raros momentos de trégua, os moradores da Rua do Porto começaram a se preocupar com o nível da água do rio, que subia rapidamente. Chamaram a Defesa Civil, que garantiu que não haver risco de transbordamento, mas não foi o que aconteceu e, por volta das 22h30, as águas do rio invadiram as casas e os restaurantes da Rua do Porto.
O nível do rio registrou seu maior valor às 5 horas da manhã. Apesar da madrugada de muita chuva, pela manhã o sol resolveu aparecer. Os moradores, em sua maioria, já tinham retirado seus pertences e, sentados em cadeiras de praia, esperavam a água baixar. A luz do dia revelava os dejetos que a enxurrada havia trazido para a Rua do Porto e os estragos que provocara. Alguns garotos nadavam na água barrenta e outros pulavam com boias de uma ponte. Muitos curiosos chegavam para ver o rio e fotografar a rua tomada pelas águas. Um homem, abaixado próximo à água, chorava. Perguntei-lhe se havia perdido alguma coisa nas águas do rio, ele disse que seu choro era de felicidade por poder ver o rio “vivo” novamente.
Uma equipe de repórteres procurava por pessoas que pudessem dar depoimentos lamentando a enchente na Rua do Porto, mas os discursos eram de felicidade. Dois jovens, de costas para o rio, atiravam a linha de suas varas de pesca em direção à rua alagada; alguns minutos depois, capturaram um peixe, o que os fez cair na gargalhada. Uma camisa, aparentemente passada a ferro, pendurada por um cabide no quintal de uma das casas alagadas e um cheiro de café no ar indicavam que alguém se preparava para ir trabalhar. Algumas casas exibiam nas janelas uma bandeira do Divino Espírito Santo. A bandeira posicionada na janela é um pedido ao rio para que a água não invada a casa, mas também é sinal de agradecimento por ele se mostrar vivo.
Naquele ano, 2016, o Sistema de Acompanhamento dos Reservatórios, que também monitora as represas localizadas na bacia hidrográfica do rio Piracicaba, acabou por recomendar a abertura de algumas comportas localizadas no rio Piracicaba, como as da represa da Usina Hidrelétrica de Salto Grande de Americana, administrada pela CPFL, para prevenir o rompimento das barragens. A previsão do tempo mostrava que o período chuvoso e o nível de água das represas estava alto para aquela época do ano.
É importante citar que em 30 de abril de 2019, após rompimento da barragem da Vale em Brumadinho (MG), a barragem de Salto Grande foi incluída na lista de estruturas onde há riscos em caso de rompimento, sendo classificada como de “alto risco e dano potencial alto”.
Durante os períodos de cheia do rio Piracicaba, muitas vezes a Rua do Porto fica alagada. Além de as águas entrarem nas residências e nos restaurantes, as enchentes impactam as atividades de pesca, turismo e lazer. Nos últimos vinte anos, foram registrados 45 alertas emitidos pela Defesa Civil e vinte episódios de alagamento ou enchente. Os imóveis da Rua do Porto estão todos numerados com placas pela Defesa Civil, indicando a prioridade de retirada dos moradores e seus pertences em caso de transbordamento do rio Piracicaba.
O notável nas enchentes do rio Piracicaba era o comportamento dos moradores da Rua do Porto, pescadores em sua grande maioria. Eles se recusavam a deixar suas casas, mesmo quando as águas entravam pelas janelas. A tragédia chegava a ser atração também turística pelo quase inacreditável: pescadores dormindo em seus botes dentro de suas próprias casas. Depois do Sistema Cantareira, as enchentes se tornaram cada vez mais raras, sendo a mais impressionante, nos últimos tempos, a da década de 1970 (NETTO, 2000, p. 36).
Algumas pessoas afirmam que os períodos de cheia e de seca do rio Piracicaba são provocados pela dinâmica de regulação e captação das águas da bacia hidrográfica do rio, operada por sistemas de abastecimentos e de produção de energia elétrica. Outros sustentam que a seca e a cheia são resultado da vazão natural do rio, em decorrência de períodos mais ou menos chuvosos. Nos documentos que tenho pesquisado, encontrei muitos relatos sobre as secas e cheias do rio Piracicaba, o que demonstra que a variação sempre fez parte da história do rio. Mas muitos relatos dizem que isso se intensificou e que a imprevisibilidade são consequências da construção de barragens.
Enchentes do rio [Piracicaba], inundando a Rua do Porto, chegaram a ser uma quase poética tradição de Piracicaba. Era uma tal beleza trágica que o bem e o mal pareciam unidos num mesmo fenômeno natural que, trazendo desespero para muitos, arrebatava como espetáculo também humano. Pois os moradores da rua, pescadores e seus familiares, negavam-se a sair, como se o rio, como entidade por assim dizer sagrada, não lhes desse autorização para abandonar suas águas (NETTO, 2000, p. 36).
O transbordamento do rio Piracicaba é narrado no noticiário local como um acontecimento que “pega a todos de surpresa”. As equipes de reportagem buscam sempre por pessoas que sofreram perdas com as enchentes. Os representantes do poder público também adotam a narrativa da imprevisibilidade nos discursos públicos sobre os episódios. Na verdade, poucas são as vezes em que os moradores não conseguem se preparar para a chegada da inundação e são pegos de surpresa. A imprevisibilidade dos transbordamentos, segundo os moradores da Rua do Porto, está relacionada à abertura das comportas das barragens localizadas ao longo do rio Piracicaba. Se algumas narrativas tentam evidenciar o transbordamento como tragédia, outras o descrevem como espetáculo, como o homem que chorou por poder “ver o rio vivo novamente”, os garotos que nadam e pescam na rua alagada.
No transbordar das águas, o rio reivindica que todo seu entorno também seja rio. É nesse movimento que ele corre com força envolvendo rua, casa, pescador, garoto, barco, num movimento vivo que revela sua trajetória.
Para muitos, havia prejuízos e dramas. Mas, no fundo da alma de cada um, pulsava um sentimento de alegria por ver o rio exuberante, vivo, fecundo. Pescadores teimavam em ficar dentro de suas casas, dormindo nos barcos, bebendo cachaça, conversando, contando causos, enquanto familiares eram abrigados no Clube de Regatas (quando também não inundado), em escolas, na sede da Irmandade do Divino. Misto de tragédia e de alegria, as enchentes do rio Piracicaba fazem parte de nossa história. E, mais do que maus presságios, as águas, transbordando, sempre foram sinal de bons augúrios, de fartura, de vitalidade e, em réveillon, indícios de um ano novo pródigo (grifos meus. Disponível no link. Acesso em: ).