Elias dos Bonecos
A imagem é formada por desenhos produzidos por minha companheira Laura e por uma fotografia de autoria desconhecida, em que aparece Elias dos Bonecos, que foi encontrada por mim durante minha trajetória com o rio Piracicaba. Os desenhos foram feitos em caneta nanquim sobre uma folha de papel branco em 2014. Para essa montagem utilizei dois desenhos e uma fotografia sobrepostos em um aplicativo de editor de imagem. O desenho dos bonecos do Elias segurando uma bandeira do Divino Espírito Santo foi sobreposto por outro com linhas contínuas e posteriormente, sobrepostos à fotografia de Elias dos Bonecos. Outras sobreposições foram testadas antes de se chegar a esse resultado.
No centro da imagem, a bandeira do Divino se faz presente. Os bonecos seguram a bandeira que é sobreposta por linhas contínuas (pelo fluxo das águas do rio) que atravessa a imagem. Do lado direito Elias segura um de seus bonecos no colo. As águas do rio transpassam a imagem, os bonecos se mantêm em pé segurando no mastro da bandeira do Divino, insistindo em permanecerem com o rio.
Na margem direita do rio Piracicaba, na região da Rua do Porto, desde a década de 1970 bonecos segurando varas de pescar, feitos de materiais descartados coletados ao longo do rio, fazem parte da paisagem. Esses bonecos foram feitos por um antigo morador que viveu na Rua do Porto entre 1931 e 2008, o Elias dos Bonecos (Elias Rocha). Elias era um “barranqueiro” (aquele que pesca dos barrancos do rio), nascido e criado nas margens do rio. O antropólogo John Dawsey (2012; 2020) realizou pesquisa com Elias dos Bonecos e descreveu o susto que levou ao deparar com essas figuras nas margens do rio.
Em meio à mata, nos barrancos, vi alguns bonecos pescadores. Seriam humanos? Levei um pequeno susto. Imagens fantasmagóricas. Pareciam visagens, assombrações ou espantalhos. Depois viria a saber que eram os bonecos do Elias, um dos moradores da Rua do Porto. Revivi esse leve susto em duas ocasiões, em 1982 e em 1989, quando revi os bonecos após dois períodos de ausência de Piracicaba (DAWSEY, 2012, p. 187).
Em entrevista que concedeu a Dawsey em 1993, Elias narrou que tudo começou com a filha da vizinha de Elias que queria um boneco. “Já havendo feito bonecos para as festas de malhação de Judas na Rua do Porto, Elias fez um boneco para a criança. A menina gostou. Mas o seu irmão mais novo se assustou. […]. A mãe das crianças então pediu que Elias levasse o boneco embora. Ele o levou para a beira do rio.” (DAWSEY; SANTANA, 2020, p. 32). Em seguida outros bonecos foram criados e passaram a fazer parte da paisagem do rio Piracicaba. Elias disse que ele próprio se assustou “pois, na imagem do boneco, ele reconheceu as pessoas de sua própria família e vizinhança, inclusive as que haviam falecido […]. Se essas figuras às vezes eram chamadas de ‘bonecos do Elias’, o artista e artesão Elias Rocha, invertendo e corrigindo a formulação, chamava a si mesmo de ‘Elias dos bonecos’” (DANWSEY; SANTANA, p. 32).
Elias contou também que os bonecos, assim como os moradores e pescadores, não deixam os barrancos do rio. Eles resistem até mesmo às enchentes. Entretanto, ele diz que algumas pessoas arrancam os bonecos: “aproveitam a ocasião [da enchente]. Levam embora, jogam na água só pra ver rodar, mas [o boneco] não sai de lá, está enfincado mais de meio metro”. Tal como os bonecos, Elias conta que mesmo quando a água do rio entrou em sua casa, por ocasião de alguma enchente, ele também não saiu dali. “O rio já chegou até aqui, ó. [Ele indica na parede a marca da enchente.] Mas nada me tira daqui. Eu até gosto de enchente” (DAWSEY, 2012, p. 193).
Por que Elias fazia os bonecos? Um circuito mimético imerso em relações de dádiva envolvendo vivos e mortos ressoa na experiência do artesão que age como quem deve obrigação ao rio. Como um remoinho de onde surge a própria dádiva da vida, tanto para os que vivem no aqui e agora quanto para os que já viveram ou ainda poderão nascer, se apresenta o rio no imaginário de Elias. […] Em suas trocas com o rio e com o ambiente do seu entorno, moradores tornam-se semelhantes às criaturas que ali vivem. O irmão de Elias se chama Lambari, Elias se compara a um sapo do brejo. Até anos recentes, moradores comiam as plantas e os frutos de hortas cultivadas em barrancos do rio. Bebiam de suas águas e se alimentavam dos peixes. Assemelhando-se ao rio e às suas criaturas Elias e outros barranqueiros não conseguem ver-se longe de suas margens. “Se sair daqui eu morro!” Se a força das dádivas vem, como diria Mauss (2003, p. 197), do “espírito da coisa dada”, esse “espírito”, diria Elias, vem principalmente das águas do rio. À sua imagem e semelhança são feitas as suas criaturas. Ao rio Elias pertence. Ao seu cavalo, que o acompanha na coleta de sucata, ele deu o nome de Lontra – um cavalo do rio. Assim também ele entende os bonecos: ao rio pertencem (DAWSEY, 2929, p. 193, grifos meus).
Elias dos Bonecos ficou doente em 1993 e passou por uma cirurgia em 1996, depois disso perdeu a voz. Faleceu em 1º de abril de 2008. Alguns de seus bonecos foram levados para dentro da “Casa do Povoador” para que fiquem preservados. Réplicas foram colocadas nas margens do rio Piracicaba. Os bonecos, assim como Elias, permanecem lá até hoje.
