A imagem é uma fotografia feita por mim em janeiro de 2016 durante um transbordamento do rio Piracicaba na Rua do Porto. Na ocasião, eu estava dentro de um barco que navegava pela rua alagada e fiz a imagem da entrada interditada de uma das casas. No centro da cidade de Piracicaba, situada à margem esquerda do rio, a Rua do Porto é consagrada como um corredor de lazer e como local de rememoração histórica que ultrapassa o tombamento dos edifícios nela situados, alcançando personagens e situações que constituem o imaginário daqueles que vivem e falam sobre seu passado.
Desde o início da povoação, a Rua do Porto foi palco das paixões humanas que nela surgiram cruamente: conflitos, contradições, disputas. Nela pulsava a vida de negros, índios, caçadores, capitães do mato, garimpeiros, pescadores, pagadores do governo. As principais lendas de Piracicabanas subsistem à sua sombra, como se fantasmas ainda a habitassem com seus amores, paixões, desejos (NETTO, 2015, p. 56).
Essa rua é uma marca na cidade de Piracicaba, pois constitui-se como um baú de memórias que desperta inúmeras lembranças – individuais e coletivas, afetivas e políticas – em moradores e visitantes. O relato abaixo, escrito pelo jornalista e escritor piracicabano Cecílio Elias Netto, mostra o lugar simbólico que essa rua ocupa na cidade de Piracicaba:
A Rua do Porto é o umbigo de Piracicaba, nossa pia batismal, como o escrevinhador se acostumou a repetir. A Rua do Porto contém a história da cidade, numa tradição oral […]. Os moradores daquela rua ribeirinha conheciam cada pedra do rio por seu nome, cada trecho por seu apelido. Lugar de histórias e de fantasmas, de amores e de crimes, de boemia e de fascínio a artistas, poetas, escritores. (NETTO, 2016 , grifos meus).
Os edifícios tombados na Rua do Porto buscam preservar a memória de bens reconhecidos oficialmente pelo poder público. Atualmente, a Rua do Porto é palco de inúmeras relações e formas de sociabilidade que se transfiguram com a passagem do tempo e atuam na transformação do espaço. Ora ela é ocupada por aposentados jogando caxeta ou dominó, ora serve de palco para apresentações e exposições artísticas; algumas vezes vira trajeto de procissão, outras vezes é local de confraternização; também é lugar de turismo gastronômico ou, então, local de passagem para chegar à pista de skate. É ponto de encontro de jovens e local de apreciação das águas do rio Piracicaba e de edifícios antigos reconhecidos como patrimônio histórico da cidade. Já abrigou um engenho de cana-de-açúcar, olarias, uma indústria de tecidos e fabriquetas de pamonha. Foi local de prostituição e de crimes que marcaram a cidade. Também foi local de disputas de projetos e suas interpretações do lugar, como o projeto para a implantação do Museu da Cana-de-Açúcar, iniciado em 2011; o projeto de requalificação urbana beira-rio; e a publicação do livro Piracicaba, o rio e a cidade: ações de reaproximação desenvolvido pelo Instituto de Pesquisas e Planejamento de Piracicaba (Ipplap, 2013.).
Na década de 1970, um projeto da prefeitura anunciado como a “reconquista da Rua do Porto” se propunha a restaurar o imaginário bandeirante. O projeto envolvia: “além das obras de restauração – a promoção do turismo, a urbanização da principal rua beirando o rio, a construção da nova sede da prefeitura e a remoção de moradores” (DAWSEY;SANTANA, 2020, p. 3). A visão que inspira a política da prefeitura, de “reconquista das margens do rio Piracicaba” (cf. Otero; Souza, 2011) e talvez de conquista do próprio rio parece enxergar o rio somente como um “vetor de desenvolvimento”.
Essa rua hoje é conhecida pelos restaurantes que vendem o “tradicional peixe no tambor”. O peixe é o principal atrativo gastronômico da Rua do Porto. Muitas pessoas vêm de outras cidades para comer o famoso peixe na beira do rio. Nos finais de semana e feriados, encontramos os restaurantes da Rua do Porto bem cheios. Em um único restaurante podem ser servidas mais de trezentas refeições em um domingo, tal o movimento. Os peixes são pré-assados na beira do rio e os diferentes tipos podem ser escolhidos pelos clientes direto nos tambores de lata: filhote, pintado, piapara, tambaqui, linguado, tilápia, abadejo, merluza, tucunaré́, anjinho, cascudo, salmão etc. Geralmente, os garçons oferecem como complemento cuscuz, salada e batata frita. Caipirinha, cerveja, refrigerante, suco e água são as bebidas compartilhadas pelos clientes em suas mesas. (CAMARGO, 2016a, p. 45).