Paiaguás

     A imagem é uma fotografia feita por mim em janeiro de 2016. Era noite e as águas do rio Piracicaba entravam pelos bueiros da Rua do Porto anunciando a enchente. Apreensivos os moradores da região observavam a água tomar conta da rua. Uma moradora me disse que se a água do rio ultrapassasse a tampa do bueiro do meio da rua, podíamos ter a certeza de que as águas invadiriam as casas. Ao fazer a fotografia, me lembrei dos relatos sobre os indígenas Paiaguás, senhores das águas e anotei em meu caderno de campo “os Paiaguás ainda resistem”. 

     A margem direita do salto do rio Piracicaba, a 90 km da foz, já foram lugar de morada do povo indígena Paiaguás. Os Paiaguás antecederam a povoação fundada em 1766 pelo Capitão Antônio Corrêa Barbosa para servir de apoio às embarcações que desciam o rio Tietê, oferecendo retaguarda ao abastecimento do forte de Iguatemi, fronteiriço do território do Paraguai (Ipplap. Disponível no link. Acesso em: ). 

     As expedições fluviais bandeirantes, denominadas monções, adentravam os territórios dos Paiaguás provocando uma série de confrontos nas rotas dos rios

Após os primeiros ataques ocorridos na década de 1720, os monçoeiros passaram a estabelecer estratégias para fugir dos assaltos dos Paiaguá, como navegar apenas em comboios e com canoas artilhadas, mas isso não cessaria as investidas dos índios, já que eles conheciam o curso das águas. A escolha dos meses também influenciava no sucesso das monções. O ideal era que as embarcações que saíssem de Povoado para as minas cuiabanas partissem no princípio de junho até o dia de São João. As que saíam das minas para Povoado deveriam partir ao final do mês de julho, início de agosto, pois nesse período as águas estavam baixas, o que facilitava o percurso nos rios e dificultava a organização dos Paiaguá nos sangradouros.

Diante do desconhecido, “era muito natural que os primeiros sertanistas aprendessem com os nativos os processos para melhor e menos perigosamente navegarem os rios de águas revoltas”. Logo, os tripulantes das monções aprenderam a remar de pé como os Paiaguá. Diante das dificuldades em conservar os alimentos, foi preciso aprender a caçar, pescar e coletar como os indígenas. (CITAR)

     O rio Piracicaba é narrado como território dos Paiaguás, que se autodenominavam evuevi, “gente do rio”. Dawsey e Santana (2020) narram que  na região do Largo dos Pescadores, na Rua Morais Barros, por onde passava a velha trilha caiapó, e que na época dos bandeirantes virou o “Picadão do Mato Grosso”, os índios Paiaguás foram desalojados e dizimados pelos bandeirantes. Segundo Dawsey e Santana (2020), 

Na literatura sobre essa história, os paiaguás (evuevi) ganharam fama de terem sido o povo ameríndio que mais resistiu à conquista colonial portuguesa. Em 1734, deu-se início à chamada “guerra justa”, uma guerra de extermínio contra os índios paiaguás e caiapós (Neme, 2009, p. 45). Há relatos de horrores, inclusive descrevendo a colocação, por soldados de tropas expedicionárias, das cabeças dos paiaguás (evuevi) mortos, espetadas em paus, nos barrancos de rios (PAIVA, 1987). 

     Em Piracicaba, há relatos da existência de um cemitério indígena, que estaria localizado próximo as margens do rio Piracicaba na região onde está uma antiga fábrica de tecidos, a Fábrica da Boyes, hoje desativada. A primeira vez que ouvi este relato foi em 2011, numa apresentação realizada pelo arqueólogo Wagner Gomes Bornal, contratado para fazer uma pesquisa preliminar na região para se criar o Museu da Cana-de-Açúcar nos edifícios do Engenho Central de Piracicaba. O museu até hoje não foi implantado, e apesar de sua pesquisa não ter contemplado a localidade em que dizem haver o cemitério indígena, me lembro de ele ter citado a existência desses relatos. Anos mais tarde, num encontro com o antropólogo John Dawsey, chegamos a conversar sobre a existência desse cemitério. Também encontrei um relato do historiador Cecílio Elias Netto sobre a preocupação com a preservação do cemitério indígena. E mais recentemente, numa caminhada com o grupo produtor do podcast “O que te assombra?” o cemitério indígena foi um dos assuntos abordados. Apesar dos relatos, pouco se sabe sobre o cemitério.

Piracicaba parece estar, agora, diante de uma dessas provas fundamentais: somos ainda civilizados, mesmo perdendo a antiga nobreza, ou caminhamos, realmente, para a barbárie descontrolada? A resposta – pelo menos provisória ou relativa – pode ser-nos dada à luz da informação de que, na histórica Fábrica Boyes – criada por Luiz de Queiroz e palco de história e cultura memoráveis – um grupo de empresários – já conhecido por outras realizações cada vez mais ousadas – estaria pronto para erigir, no local, um dos novos monumentos ao mercado. A iniciativa até que poderá ser louvável, apesar de ser, aquele, um dos mais históricos sítios de Piracicaba. Fica a pergunta: e o que será feito do “Cemitério dos Índios”? Será que os empreendedores sabem de sua existência? E essa nova Piracicaba, sabe que – naquela área e antes da chegada do homem branco – índios haviam criado o seu campo santo e sagrado, descoberto em buscas arqueológicas? (Disponível no link. Acesso em: )

No princípio, era o rio. E as matas virgens. E índios. O primeiro homem branco apareceu não se sabe quando. Nem quem foi ele. Mas ele trouxe o negro escravo. O fato é que tudo começou a acontecer quando o “rio paulista por excelência”, o Tietê – “o rio fundo, rio verdadeiro, rio dos canários” – era, ainda, para o índio, o Anhembi, “rio dos nambus, das anhumas”.

Um dia o homem branco apareceu nele, o rio de muitas grafias. E outra história começou. Muita coisa aconteceu, coisas incríveis de se contar. Mas, para a aldeia de nossa história, o que importa surgiu da aventura das monções, expedições que, saindo da Capitania de São Paulo, iam em busca de riquezas descobertas em terras distantes. Os “caçadores de índios” foram atacados pela febre do ouro e, ainda no final do Século XVII, vão Tietê abaixo em direção ao Eldorado, em busca das “minas gerais do ouro de São Paulo”.

Depois, o chamamento viria de Cuiabá: ouro e maldições de doenças, febres, massacres humanos. Índios das tribos guaicuru, caiapó e paiaguás reagem e enfrentam as multidões que formam as bandeiras, as monções. O homem branco vai dizimando multidões que ele chama de “selvagens”, queimando matas, destruindo florestas. O rio Piracicaba passa a ser, também, uma dessas “estradas fluviais”. E há pequenos grupos de roceiros em um ou outro ponto de suas margens. (Disponível no link. Acesso em: )

 

REFERÊNCIAS