Pescadores
A imagem é formada por fotografia produzida por mim durante minha trajetória com o rio Piracicaba; foi feitam em junho de 2014 na região da Rua do Porto. A imagem, cortada manualmente em filamentos e invertida, é de um pescador sentado às margens do rio Piracicaba. Não é possível saber o que é margem e o que é rio. No centro da imagem está o barranco que espera pelo peixe.
No ano de 2014, numa segunda-feira, estacionei meu carro na região da Rua do Porto, às 6h30 da manhã e, de dentro de meu carro, observei o movimento de pessoas que caminham por ali. Desci do carro para observar mais de perto e encontrei os barrancos do rio Piracicaba preenchidos por centenas de pescadores. Uma placa informa que a prática da pescaria não é permitida nessa região o ano todo. A movimentação dos pescadores que chegavam pela Rua do Porto era bastante diversificada. Muitos são os caminhos percorridos para chegar na margem do rio Piracicaba. Sozinhos ou acompanhados, alguns estacionavam perto de onde estava meu carro e retiravam seus equipamentos do porta-malas; alguns chegavam caminhando de algum lugar distante carregando uma vara de pescar e uma mochila pequena; outros chegavam de moto e estacionavam próximo a margem; outros achegavam de bicicleta e as prendiam a alguma árvore bem próxima das águas do rio. Conversando com alguns soube que havia entre eles moradores da Rua do Porto, alguns vindos de bairros mais distantes e outros de cidades da região.
Nas minhas caminhadas deparei com diferentes pescadores com diferentes motivações para estar ali: velhos, adultos, jovens e crianças; mulheres, homens e famílias. Existem aqueles que formam o circuito esportivo da modalidade de pesca de barranco; o aposentado, como Seu Antônio, que vende o peixe para complementar sua renda; os que pescam e levam para casa para comer, como Seu José; os que nunca pescaram na vida e “brincam de pescar” pela primeira vez; uma pessoa em situação de rua que pedia dinheiro por ali para comprar uma vara de bambu, pescar seu alimento e cozinhá-lo ali mesmo na beira do rio.
Apesar de também proibida, a pesca de tarrafa também é praticada por alguns no rio Piracicaba. Seu José conta que, como alternativa para conseguir burlar a fiscalização, os pescadores de tarrafa carregam junto ao material de pescaria uma câmara de pneu de caminhão. Ao avistarem a fiscalização jogam a câmara no rio e pulam em cima, deixando a correnteza levá-los para longe dali. Apesar disso, muitos pescadores de tarrafa são pegos pela polícia durante o ano. Quando perguntei a Seu José como ele fez para pescar durante os episódios de mortandade de peixes no rio Piracicaba, ele reclamou da fiscalização, que proibiu a pesca, mas não faz nada para impedir a morte dos peixes.
Encontrei-me com esses pescadores não somente pescando nos barrancos, embaixo dos deques de madeira construídos pelo Projeto Beira-Rio da prefeitura. Algumas vezes encontrei eles, nos seus barcos que estão compondo a paisagem ou em suas varas de pescar e minhocas vendidas em pequenas casas e mercadinhos. Outras vezes percebemos sua presença nos restos de iscas e nos materiais utilizados na pescaria deixados pelo barranco.
A história contada pelos documentos oficiais da cidade de Piracicaba diz que em 1950, as margens do rio Piracicaba eram conhecidas por serem a segunda maior colônia de pescadores do estado de São Paulo (NEPTUNE, 2003, p. 44). Quase duas mil embarcações se enfileiravam nos barrancos do rio e capturavam, em média, mil quilos de peixes diariamente (CARRADORE; BUZETTO, apud DAWSEY, 2012, p. 198). Foi por essa razão que dois restaurantes se instalaram nos anos 1970 ali e para assar em latões de ferro os peixes capturados pelos pescadores no rio Piracicaba .
Em 1969, Hélio Pecorari transformou o armazém da família no restaurante Arapuca, o primeiro da Rua do Porto. Segundo o jornalista Cecílio Elias Netto:
a Rua do Porto tem, no restaurante “Arapuca”, como que um símbolo de resistência e de manutenção das tradições. O lugar, tendo sido venda e olaria no final do século XIX, adquirido por Afonso Senofonte Pecorari, passou, por herança, a seu filho Alidor e deste a seus filhos Nida, Paulo e Hélio Pecorari. Foi com Hélio e Paulo Pecorari que se criou o Restaurante Arapuca, no ano de 1969, o pioneiro na rua que se tornou o principal ponto de encontro da Cidade e centro turístico. No ano 2000, as tradições da “Arapuca” se mantêm com o casal Hélio e Alaíde Pecorari e os filhos Paulo César e Marcos. (2000, p. 36).
A partir dos anos de 1990, uma série de restaurantes começaram a se instalar na Rua do Porto. Até 1998, já eram onze os restaurantes que ocupavam a margem do rio na região da Rua do Porto. Apesar disso, é importante relatar que desde 1979, representantes da colônia de pescadores da Rua do Porto manifestavam preocupação com a diminuição de suas atividades, pois, segundo eles, os peixes estavam sumindo dali. A partir de 1990, os peixes comercializados nos restaurantes da margem do rio Piracicaba vinham de outras localidades. Guidotti escreveu em 1992 que
O rio, há muito tempo está morrendo. […] Despejos industriais eliminam gradativamente a fauna das águas. O dourado, um dos peixes que fizeram a tradição do Piracicaba, desapareceu. E com ele muitos outros espécimes, pois cardumes inteiros rodam quando das épocas mais drásticas, fazendo com que os restaurantes e hotéis de Piracicaba adquiram, para o consumo, peixes oriundos dos rios do Estado do Mato Grosso. (GUIDOTTI, 1992, p. 64, grifo meu).
Entretanto, os pescadores que habitam o passado da Rua do Porto alimentam o imaginário de se comer peixe fresco na beira do rio. Atualmente, o peixe vendido nos restaurantes a beira-rio é pescado em outras localidades, limpo, embalado e congelado em processos de relações exploratórias que vão desfigurando a imagem do rio.
Em minha pesquisa de mestrado, realizado no Programa de Pós-Graduação em Ciências Sociais da Universidade Federal de São Paulo, a primeira questão que emergiu de algumas imagens que construí durante minha pesquisa foi a dos pescadores como figuras fantasmagóricas na tensão das temporalidades do rio Piracicaba. Os pescadores só foram percebidos por mim depois de um olhar prolongado no espaço, ou na imagem, quando me debrucei sobre as fotografias feitas em campo, num processo quase arqueológico, recortando-as e compondo sobreposições – movimentos de pesquisa realizados em parceria com minha companheira Laura Lino.
Foi nesse processo de pesquisa que eles surgiram para mim como fantasmas. Pensar o fantasmagórico é olhar para os modos como a rua, a cidade ou o desenvolvimento é imaginado e subjetivizado, pois o fantasma habita uma zona de imprecisão: pertence ao imaginário, mas vive no real, revelando uma temporalidade tensionada por dois vetores:
um deles apontando para o passado, a falência e a morte, o tempo ido; outro, apontando para o presente efêmero, com todos os vestígios de uma vitalidade significativa, o tempo do agora […] “imagens despertadas”, como falaria Benjamin – é também um lugar liminar, semiocupado, nas margens. (SILVEIRA, 2012, p. 59).
