Festa do Divino Espírito Santo de Piracicaba

     A imagem é formada por camadas de fotografias e desenhos produzidos durante minha trajetória com o rio Piracicaba. As fotografias recortadas em fragmentos que compõem a imagem foram feitas por mim em julho de 2014 na região da Rua do Porto. Para essa montagem utilizei cinco fotografias e alguns traços desenhados por minha companheira Laura. A parte da montagem com imagens da festa do Divino foi feita de num processo que consistiu em selecionar as fotografias, imprimi-las, recortá-las, remontá-las como um mosaico. Essa montagem foi escaneada e, com um aplicativo de edição de imagem, sobreposta à fotografia do pescador que caminha sobre o leito do rio e aos  desenhos de Laura. Outras sobreposições foram testadas antes de se chegar a esse resultado. 

     No centro da imagem, um pescador caminha sobre as pedras do rio Piracicaba. Ao fundo, uma garça faz-se presente navegando num barco. A imagem é sobreposta por outra, que se revela do lado esquerdo. A sobreposição é composta por um desenho e por fragmentos de fotografias da bandeira do Divino Espírito Santo. O rosto de uma devota chorando também está presente. É o tempo das promessas e dos agradecimentos. É o tempo do Divino Espírito Santo. O leito do rio está seco. Suas águas ficam mais calmas nesse período de estiagem.

     No início do mês de julho, um mastro, fixado às margens do rio Piracicaba, anuncia a chegada de um novo tempo. No dia da “derrubada dos barcos do Divino”, em frente ao Largo dos Pescadores, centenas de pessoas circulam com bandeiras vermelhas com fitas coloridas. As águas do rio Piracicaba, apesar de mais calmas do que em relação aos períodos chuvosos, provoca um som alto que se mistura ao dos instrumentos de sopro dos músicos da banda União Operária. Dois barcos com a inscrição da Irmandade do Divino Espírito Santo estão posicionados numa rua lateral de um salão da Irmandade, ali um altar fica preparado para a celebração das missas. Rei, Rainha e outros integrantes da “Congada do Divino” caminham pelo local. Fotógrafos, cinegrafistas, políticos, curiosos, crianças, jovens, velhos, muitos deles vestidos com roupas brancas e vermelhas, compõem a paisagem durante o dia no Largo dos Pescadores. À noite, nesse mesmo local, são montadas barracas que vendem comida e brincadeiras: pastel, espetinho, cuscuz, tiro ao alvo, argola, roleta, pula-pula. Um palco serve de referência para a realização de um leilão de objetos variados e para a apresentação de shows de seresteiros.

     Eu venho acompanhando a Festa do Divino Espírito Santo de Piracicaba desde 2010. Em 2011, realizei meu trabalho de conclusão de curso em Ciências Sociais na PUC de Campinas sobre a Festa do Divino Espírito Santo de Piracicaba; e em 2012 colaborei com a pesquisa que originou a publicação do livro A Festa do Divino Espírito Santo de Piracicaba pelo Instituto de Pesquisas e Planejamento de Piracicaba (Ipplap, 2012). 

     A festa é realizada às margens do rio Piracicaba, nas imediações da Rua do Porto e do Largo dos Pescadores. Com a publicação do Decreto 16.890, de 15 de dezembro de 2016, pelo Conselho de Defesa do Patrimônio Cultural de Piracicaba (Codepac),  tornou-se patrimônio histórico e cultural imaterial da cidade. A festa é realizada na primeira quinzena de julho;  são oito dias de eventos religiosos e festivos, como a bênção de barcos, bandeiras e casas; procissões; jantares; leilões; queima de fogos; e danças. A principal procissão é realizada nas águas do rio, por isso é preciso esperar pela época em que a correnteza está mais fraca. A cidade de Piracicaba é uma das poucas do Brasil em que a Festa do Divino Espírito Santo não acontece no dia de Pentecostes, e sim cerca de quarenta dias depois (FONTES de SÁ, 2021).

     É durante a festa que os devotos do Divino Espírito Santo fazem seus pedidos ou agradecem as graças alcançadas. Os pedidos são de naturezas diversas, e a cura de pessoas adoentadas é um dos mais frequentes. Interessei-me em especial pelos pedidos para amenizar os períodos de seca e de cheia do rio Piracicaba. Os pescadores e moradores que vivem às margens do rio contam muitas histórias de como enfrentaram as secas e as enchentes na Rua do Porto.

     Num encontro com dona Margarida, 78 anos, moradora da Rua do Porto, ela me conta que cuida da irmã mais velha, de 83 anos, acamada em razão de um câncer. Minha conversa com ela é mediada por Vera, uma das responsáveis pela parte religiosa da Festa do Divino. Ao entrarmos na casa de dona Margarida, ela e Vera foram logo me mostrando as marcas do rio nas paredes, consequências da última enchente – as marcas registram que as águas chegaram a um metro de altura. Depois de uma rápida reza, dona Margarida dá três nós nas fitas presas no mastro da bandeira do Divino: o primeiro nó é pela saúde da irmã, para que fique curada do câncer; o segundo nó é pela saúde do rio, para que se amenizem os períodos de seca e cheia do rio Piracicaba; e o terceiro é pela continuidade da festa.

     O barqueiro João, de 35 anos, pescador no rio Piracicaba, me conta que herdou a atividade do pai. Ele me diz que participa da festa porque depende do rio para viver, e a celebração é a maneira  que encontrou para homenageá-lo. O nó na fita vermelha da bandeira do Divino é um pedido para que o rio não deixe de dar alegria a todas as famílias e também, nas palavras dele “para que ele transborde com saúde”. 

     É importante destacar que durante a realização da Festa do Divino de Piracicaba, como em outras festas devotadas ao Divino em todo o país, é possível identificar certa descentralização das relações de poder dominante da Igreja. Diversos setores da sociedade contribuem direta ou indiretamente na concretização da festa. Comunidade local, Igreja, políticos e empresários inter-relacionam-se na produção. Não é o caso de dizer que as relações de poder se invertem, mas todos interagem para a louvação ao Divino e pela vida do rio Piracicaba. 

     Outro interesse presente na festa de Piracicaba é a congada, uma herança dos negros escravizados, que apresenta elementos do catolicismo, dos rituais e simbolismos indígenas, das religiões de matriz africanas. A comunicação com o Divino se dá por meio da dança, da cantoria e das cores.

     O rio Piracicaba negocia com os devotos do Divino ao fazer com que eles aguardem quarenta dias após o Pentecostes para realizar a Festa do Divino Espírito Santo de Piracicaba. É preciso esperar que as águas estejam mais calmas para que a procissão de barcos aconteça e ocorra o momento mais importante da festa, o encontro das bandeiras do Divino Espírito Santo. Rio e devotos se misturam e se compõem. É o rio que impõe o tempo da festa. Os devotos do Divino, por sua vez, incluem em suas preces pedidos e agradecimentos ao rio Piracicaba – “para que as águas não invadam suas casas”, “por ele mostrar-se vivo novamente”, “para que ele transborde com vida”. Respeitando o tempo das águas, agradecendo e fazendo pedidos, os devotos se comunicam com o rio Piracicaba, 

se enfeita de mil cores, por conta do sol. E a gente de Piracicaba, vinda de todos os recantos, se debruça à borda do rio, na circunspecção da roupa de festas; no multicolorido das blusas de seda; […] E da curva mansa do rio, como se surgissem da alvorada de um sonho, em toadas e preces, em movimento rítmico e uniforme, no alvoroço de remos que se cruzam, eis as canoas, pilotadas por pirangueiros, em uniforme branco. Agora, uma balsa, toda enfeitada, apinhada de gente, sacerdote, acólitos, festeiros – uma procissão fluvial – se desliza, cortando as águas, ao encontro das canoas […] Dá-se o encontro! Foguetes cruzam-se no ar. A multidão aclama os canoeiros. A banda de música rasga-se num dobrado alegre. O padre abençoa os remadores, que conduzem a bandeira do Divino. O salto [do rio Piracicaba], está a revolver-se, em gargalhadas de turquesas e prata. […] É o rio Piracicaba, encanecido de espumas, a contar as proezas de que foi testemunha, como irmão de confidencias do Tietê! É a cidade de Piracicaba a reler a sua história, na página inapagável do rio formoso! (AYRES, Mello. Jornal de Piracicaba, 1952, apud Ipplap, 2013, grifos meus).

 

REFERÊNCIAS