A imagem é formada por fotografias feitas ou encontradas por mim e por desenhos produzidos por minha companheira Laura durante minha trajetória com o rio Piracicaba. Os desenhos foram feitos com caneta nanquim sobre uma folha de papel branco em 2016. Para essa montagem utilizei um desenho de Laura e uma fotografia feita por mim em 2019. A fotografia foi impressa recortada e colada em uma folha de papel branco.Posteriormente, foi escaneada e sobreposta, com um aplicativo de editor de imagem, aos desenhos feitos por Laura. Outras sobreposições foram testadas antes de se chegar a esse resultado.
Na imagem, vários pescadores atiram suas varas de pescar a postes de energia elétrica. Os desenhos estão sobrepostos à fotografia de uma casa da Rua do Porto.
As águas do rio Piracicaba trazem marcas de suas viagens pelo sobrenatural. Histórias de amor ou de assombração e mistérios apavorantes percorrem o imaginário popular da cidade. Atravessando várias gerações, as lendas são contadas para as crianças, despertando curiosidade e medo. O piracicabano é apaixonado pelo rio e cria suas histórias sempre falando dele.
Pensando em preservar essa riqueza cultural, hoje temos essas lendas divulgadas na internet, registradas em livros para crianças como os de autoria de Ivana Negri, e transformadas em podcasts, como o “O que te assombra”, feito por Thiago de Souza Silo Sotil, Júlia Zampieri e Matheus Hass, que traz “assombrações históricas, aparições, maldições, almas penadas e tudo o que o inexplicável guarda em seus porões.” (acesse o podcast aqui)
Inhala Seca
Foi num tempo longe do agora, no fim do século passado, no tempo da escravidão. Em Piracicaba, lá pelas bandas do Morro do Enxofre, de vez em quando, onde havia um mato cerrado, aparecia a Inhala Seca. Não se sabe quem afirmou que um dia ela havia sido gente viva.
Morreu de tísica e foi enterrada no antigo cemitério de Piracicaba (local onde foi posteriormente construído o Grupo Escolar Moraes Barros).
Depois de sete anos, o coveiro reabriu a vala onde havia sido colocado o cadáver de Inhala e encontrou-o intacto – dizem que não faltava um único fio de cabelo. Sepultaram-no novamente. Passados mais cinco anos, abriram a cova pela segunda vez. Qual não foi o espanto dos presentes: lá estava ainda o corpo da morta intacto …
Sem saber que atitude tomar, como já estava escurecendo, os coveiros deixaram o corpo seco da Inhala de pé, encostado na cerca do cemitério. Quando no dia seguinte voltaram para enterrá-la novamente, o corpo seco da Inhala havia sumido…
– Fale baixo!… Quer morrer apedrejado? Inhala Seca tem ouvido de tuberculosa, ouve de longe! Ela traz consigo o vento, para que os seus passos, quebrando galhos no mato, não sejam escutados.
Ela é feia, muito feia, e muito magra; tem dedos longos e secos, armados de enormes unhas, e os ombros esqueléticos cobertos por farrapos e folhas. Segundo os que tiveram a desventura de topar com ela, Inhala se veste de mato.
Era horrível mesmo. Tem cabeça grande coberta pela cabeleira desgadelhada. Rosto chupado e olhos esbugalhados, vermelhos e acesos.
Quando se pretende enfiar o bedelho no passado, o melhor mesmo é ouvir os “antigos”. E os “antigos” dizem que ouviram contar que ela pegava gente e levava para o fundo da barroca…
O mito da Inhala Seca é, sem dúvida, uma variante do Corpo Seco, homem que passou pela existência terrena semeando malefícios. Ao morrer, nem Deus nem o diabo aceitaram sua alma. A própria terra repeliu seu cadáver, enojada de sua carne. Com a pele engelhada sobre o esqueleto, levantou-se da sepultura, para cumprir o seu fardo (Disponível no link. Acesso em: ).
Noiva da Colina
Conta-se que o rio Piracicaba era belo e calmoso, sem corredeiras, como se fosse um remanso. Às suas margens, moravam pescadores brancos e indígenas. Viviam em paz. Mas, vinda não se sabe de onde, apareceu uma jovem de “cabelos longos e tão negros que parecia ter-se, numa noite escura, diluído em fiapos mil para adornar-lhe a cabeça. Lábios carnudos, vermelhos como a romã, pernas longas e bem torneadas, olhos verdes como o verde das folhagens. Seu nome, ninguém nunca o soubera, como, também, nunca souberam onde morava e do que vivia.”
Dizia-se que ela, como uma deusa, surgira das águas. Quando não aparecia, pescadores tomavam de suas canoas e iam em busca dela, do som que vinha das entranhas do rio. Forasteiros também começaram a aparecer na povoação querendo a jovem misteriosa. Os homens se apaixonavam por ela, as mulheres a odiavam-. Certa manhã, a povoação de Piracicaba acordou em sobressalto. O filho de um dos pescadores, o mais bonito – de “pele trigueira, cabelos de ouro” – havia desaparecido. Procuraram-no nas matas, ao longo do rio, gritaram seu nome. Não o encontraram. Mas perceberam que algo estranho acontecera: havia mais luminosidade no ar, mais perfume, um “ar doce e almiscarado”.
Certa manhã, aconteceu o horror. O rio corcoveou, o céu se fechou, pássaros, pacas e veados fugiram, estrondos cortaram os ares. De repente, tudo silenciou. O rio ganhara uma cachoeira enorme, espumas e roncos que, de quando em quando, se transformavam em gemidos. Daí, soube-se o que acontecera: o rio, enciumado com o amor da moça pelo belo rapaz, desafiou-o para uma luta sem-fim. Rio e homem lutaram pela mulher que ficara prisioneira no fundo das águas. O rio venceu. E foi por isso que ganhou a cor que tem, que não é de barro, mas do “trigueiro do corpo do rapaz”. O gemido do rio são soluços da jovem à espera do seu amor.
Até hoje, quando alguém morre nas águas do rio, sabe-se que morreu em busca da noiva enclausurada. O rio reage sempre. E manda avisos: se alguém morre, a enchente vem. E somente se vai quando outro apaixonado morre em busca da noiva que está presa nas pedras do Salto. Pois foi desse amor que nasceu o Salto do rio Piracicaba Disponível no link. Acesso em: ).
Esse texto está publicado, na íntegra, na Antologia do Folclore Paulista, Editora Literart, 1959.